No princípio, mas bem no princípio mesmo era doce Margarida, dava gosto de provar, era doce favo de mel, era doce de nunca se fartar, era doce de banana, doce de abacaxi, de uva, ameixa, maçã, cereja, damasco, pitanga, pêssego, jambo, morango, amora, maracujá, brigadeiro, quindim, doce de coco, cana de açúcar, era doce para escravizar reis e enlouquecer plebeus, era doce Margarida, doce de lamber os beiços, de fazer sonhar acordado, de ter delírios e desejos nunca antes desejados, Margarida era o doce leite produzido pelas tetas de deus, doce que não estragava, sonho doce sonho, tão doce que até os anjos insípidos, assexuados e obtusos desejavam Margarida. Era Margarida todos os doces, e um festival de doces delícias que embriagavam sem alcoolizar, que embebedavam sem entontecer, que estonteciam sem atordoar, era doce e minha, tão somente minha a doce Margarida, perfeito néctar que me alimentava e me prometia a eternidade de delícias, doces delícias que homem nenhum jamais havia pensado existir.
E então, penso que do nada, engano-me pensando ter vindo do nada, tortura-me essa ideia de que do nada venha alguma coisa, ou todas as coisas, ou todos os infortúnios, ou as menores tragédias, ou os piores dissabores, desastres, terremotos, vulcões em erupção, tempestades colossais, mortes súbitas e doenças incuráveis, do nada Margarina tornou-se salgada. Não que essa mudança fosse de todo má, é que em sua grande maioria, para não dizer em sua absoluta maioria, os homens nunca estão preparados para mudanças, sejam elas graduais ou bruscas, e para um espirito preguiçoso como assim me considero, e quem me conhece pode atestar, mudanças são sempre dolorosas, mudanças são sempre melhor assimiladas por espíritos tenazes, aqueles para os quais os desafios são sempre bem vindos, diria até desejados.
Margarida era agora salgada, fez-se salgada, salgada era Margarida, e em pouco tempo pareceu que sempre tinha sido, assim havia sido criada, assim havia nascido, sempre foi essa a sua constituição, esperem, antes eu me enganei pois achava que Margarida era doce(um doce, vários doces ou todos os doces conjugados), mas hoje é salgada( todos os salgado reunidos) que reunia em sua essência todo os gostos salgados já catalogados, descobertos, apreciados, experimentados, que se tornaram a razão do meu viver. Margarida era agora (como sempre fora) o sal da minha terra. E todos os salgados estavam contidos em Margarida que por sua vez continha todos os salgados, coxinhas, risoles, empadas, quibes, enroladinhos, pães de queijo, pasteis, pipocas, esfirras, rocamboles (salgados é claro), brinholas, acarajés, farafeis, croquetes, carne assada, sopas suculentas quentes e gordurosas e todos os outros que não consigo agora lembrar.
Não mais consigo lembrar, foi-se o tempo que Margarida era tudo isso, toda doce ou inteiramente salgada. Não reconheço mais Margarida, não saberia dizer agora que gosto ela tem, qual o sabor de Margarida. Quem roubou de mim a doçura e o tempero que me enfeitiçavam. O doce que me corrompia, o sal que me santificava.
Fui tolo em crer que era o único que a saborearia, em crer que ninguém mais a desejaria, fui imprudente, invigilante, negligente, e antes que tivesse tempo de reagir as investidas dos invejosos que cercavam Margarida com seus vorazes apetites e impuros desejos de possuí-la, de devorá-la, roubá-la de mim, eu que por pura vaidade exibia Margarida nos festins, banquetes desprezíveis -que supunha eu- só os pobres mortais de gosto duvidoso e sem requinte de paladar frequentavam e julgava que ninguém estava à altura de possuir minha sagrada iguaria, de fazerem jus ao meu maná, perdi-a, da hipogeusia para a algesia, foi um salto, uma queda vertiginosa e minha absoluta ruína.
Não é de minha natureza dividir o que amo, o que amo me pertence e a ninguém mais, o direito de um homem termina onde começa o de outro, não é isso o quem dizem esses mesmos que perfidamente hoje se deliciam com o que há de mais puro, de mais sublime, eu poderia até dizer de divino, mas, apartado de Deus, de mal com sua preguiçosa onipresença, onisciência e onipotência, que deixou roubarem de mim minha inesquecível Margarida. Talvez Ele mesmo, me invejasse também, talvez Ele desejasse Margarida, logo Ele, eunuco decrépito e ainda mais sem paladar, chefe de um exército de anjos ociosos que sem pudor algum foram cúmplices de tão odioso plano, de tão vil intento, me roubar Margarida.
Acho que nem sei mais o que falo, nem sei mais o que penso, nem sei mais onde Margarida está, por onde onda, com quem divide seus sabores, se pensa em mim (ectomorfo, raquítico, desnutrido, famélico, esfaimado, faminto), só sei que jamais poderei esquecê-la, que a fome é hoje minha única companheira, uma fome que ninguém jamais teve, nunca terá, tendo uma vez conhecido e perdido Margarida.