Cecilia

MENINO CHORANDO

MENINO CHORANDO

 

                                                                                        

Acordou  assustado, nó na garganta.   Na  semi vigília o pesadelo continuou: o poço na planura imensa, e a mãe estendendo-lhe os braços, do fundo da goela negra, sumindo, sumindo...

Despertou de vez, paralítico de medo.   No aconchego de sua cama,  Mamãe viria, com suas mãos de nuvem e sua voz de seda.  Dorme, filhinho, dorme...  

No quarto estranho, escuridão cheia de vultos e rumores, o medo sufocava.    Tossiu, tossiu, dentro do travesseiro.   Menino na casa dos outros não chora , nem tosse..

Quando Vovô vivia, podia pedir, perguntar.  

_Que é de mamãe, Vovô?                                                                   

_ No hospital, doente.   Mas vai sarar, se Deus quiser.

          Imaginava mamãe deitada em lençóis alvíssimos, um vai vem de enfermeiras silenciosas.

Que ela tem?

            Tem o juízo perturbado.   Precisa  repousar, quieta, longe de todos nós.   Também sinto falta,  não podemos ajudar nada.   Só esperar e rezar.

Quero ir lá.   Não faço barulho, falo baixinho.   Só quero ver,  dar um beijo.

Não é bom, filho.  Nem para ela, nem para você.   Mamãe vai sarar, voltar para casa, vamos esquecer este tempo ruim.

          Tossiu, tossiu, tossiu.   O peito, a garganta, a cabeça, doíam, mas o pior era o medo.   Medo de virar na cama, de puxar as cobertas, de olhar em volta.  Mamãe trazia xarope, enrolava lenço com álcool no pescoço.   Mas o que curava mesmo era a sombra vergada sobre a cama, o peso carinhoso das mãos, o acalanto suave:  Dorme, filhinho, dorme...

          Dormiu um pouco, sobressaltado, para sonhar uma aflição maior.   Longe, sorrindo, mamãe esperava e ele corria, gritando de pura alegria.   A visão demudando, e não era mais sua mãe aquele ser alheado e disforme, na camisola encardida.  Parou ofegante, entre a solidão e o fantasma.  

          Queria esquecer a lembrança pungente da visita.   Chegara ao hospital ansioso, mal se contendo de antecipação.   Mamãe estaria magrinha, pálida, cheia de saudades.   Ele sufocaria o desejo de subir no seu colo, pular à sua volta como um cabritinho doido.

          A figura da louca fulminou-o como um raio. Atordoado, sem coragem de erguer os olhos, fixou-se nas mãos da mãe, soltas no colo.   Não estavam loucas, eram as mesmas, macias e tranqüilas.   Ao contrário dos olhos vagos, dos pés desgovernados, dos lábios frouxos, as mãos continuavam belas,  e descansavam placidamente nos joelhos.

          Quem sabe elas fossem refúgio, ilha, oásis, no corpo destroçado.   Quem sabe, enquanto a doença fora tomando o corpo, a mãe recuara até ficar todinha concentrada nas mãos.   A despeito da fealdade do resto,  estaria ali, serenamente residindo nas próprias mãos, enquanto o corpo não a merecia.   Quando sarasse, mamãe se alastraria de novo para o corpo todo, e seria linda e boa, como antes.

          Acariciou timidamente as mãos, encostou-as nas faces, nos lábios, mendigando um afago consciente.   Não.  Não estava nas mãos.   Nunca mais, em seus pensamentos, poderia localizar a mãe que fora sua.   Ausente de si mesma, onde estaria?

          Tossindo de novo,  chorou perdidamente pela noite adentro, um pranto fundo de soluços espaçados.

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Margarida, vem conversar comigo...

­­Margarida,   tenho saudades do meu filho.   Você tem filhos, Margarida?  O meu tem cinco anos e está sozinho nesta noite comprida.   Abandonei meu filho, como dói. 

Ainda não,  Margarida, tenha pena.  Deixe-me aproveitar este momento bom de pensamento limpo.   Deixe-me aproveitar a luz para pensar no meu  filho, para sofrer com ele.   Depois tudo se mistura, não encontro mais sua figurinha amada.   Perco meu filho de novo, como dói!

Ele é tão pequeno e sensível!   Agora, na entrada do inverno, costuma adoecer, tem pesadelos e. demora  a dormir, tossindo, tossindo.

Não, Margarida, não, ainda não.  Veja como estou falando bem, calma, como todo o mundo.

Meu filho  chora e não chama ninguém.  Ouço seu pranto, sinto seu medo.   Não é o sangue que me lateja nas veias surdamente, são seus soluços ecoando no meu corpo.   Seus soluços batem nos meus pulsos e não tenho mãos de carinho.  Seus soluços batem na minha garganta e não tenho voz de consolo.  Seus soluços batem nas minhas têmporas e não tenho lágrimas para chorar com ele.   Meu filho chora sozinho, sem mãe que o embale.   Meu filho chora em outro mundo, Margarida.

Conheço tudo aqui.   Em pouco  você me aplicará um sonífero.   Quando despertar, terei perdido meu filho.   Tive um encontro breve, e ele estava chorando, meu filho órfão chorando na noite.  

Dorme, filhinho, dorme...