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Gustavo Guedes Araújo

A fuga de Mia

A fuga de Mia

Na Bahia existia esta cidade do interior, como existia várias outras. Porém, nessa cidade em específico, algo estava ocorrendo: Era clima de luto na casa da família Lima, família rica da cidade. A cadela Mia havia fugido. O Sr. Lima, não se importou muito, estava ocupado demais com os negócios e com as quedas e altas das bolsas. A Sr.ª Lima, por outro lado, estava bem preocupada. Não só porque ela gostava muito da cadela, que era recém chegada na casa, mas principalmente por conta da sua filha Sophia, de 8 anos de idade.

Alguns empregados corriam pra lá e pra cá à procura da cadela, espalhando panfletos e perguntando ao povo da cidade se tinham visto uma pequena poodle branca, mas eles nem sabiam o que que era “pudô”, só conheciam vira-lata. Outros ficavam no quarto, ajudando a Sr.ª Lima a consolar Sophia, o que na verdade não adiantava muito, embora fossem tentativas muito nobres.

Depois de passar algumas horas, o desespero aumentou, e perguntas e teorias começaram perfurar suas mentes. Onde estaria Mia? Talvez ela não tenha ido tão longe, talvez ela só esteja escondida, afinal, nunca fugiu, deve estar com medo. E se ela estiver morta, como será que a menininha vai ficar? Perguntou uma das empregadas. Não, ela não está, vamos ter fé em nosso senhor que ela não está. 

Agora, imagino que seja interesse do leitor saber qual o paradeiro de Mia, assim como todos dentro daquela casa não? Bom, Mia havia fugido da casa por volta das cinco horas da tarde, indo em direção à divisa da cidade com outra do interior da Bahia, tão paupérrima como essa.

Muitos acreditam na ideia de que cachorros não pensam, contudo, não posso compartilhar dessa bobagem, eles pensam sim, e a prova disso era que Mia estava pensando naquele momento enquanto caminhava lentamente pelas ruas de barro da cidade, observando os barracos, que começavam desde que ela havia saído da mansão, e parecia não haver fim. Mia pensava na diferença, não na diferença que nós pensamos, aquela que indica a situação financeira, mas sim a diferença no seu mais puro significado. Pra ela não importava se um era mais pobre e outro mais rico, ela não tinha necessidade de debater sobre sistemas econômicos e desigualdades sociais, como nós temos. Ela pensava em sua dona, a pequena Sophia, e se lembrava de tudo que ela precisava pra viver: comida, amizade e uma casa pra se morar. Devíamos ser assim também, mas não somos. Não somos tão civilizados como cachorros, gatos e muitos outros animais. Preferimos complicar tudo, para deixar a vida inviável para nós mesmos.

Mia já estava muito longe e já sentia fome, a noite tinha se aproximado e ela estava sozinha. Foi quando encontrou o Sr. Samuel. Quem é essa cadelinha? Parece estar perdida. Pensou ele. Samuel era um dos pobres da cidade, e nessa, havia muitos. Todavia, apesar da pobreza de dinheiro, Samuel era rico de alma, e se apaixonou à primeira vista pela cadelinha.

Samuel queria ficar com Mia, afinal era bem sozinho. Sua esposa e sua filha ficaram doentes e morreram, ali mesmo, no seu barraco. Não pôde nem saber qual doença levaram elas, o sistema de saúde público não funcionava na cidade. Contudo, logo viu na coleira da cadela uma plaquinha com um endereço. Samuel era analfabeto, mas entendia as palavras “Lima”, que lhe deram alguma ideia do que ele estava se metendo. Com isso, Samuel decidiu que levaria a cadela para a casa da família Lima, que ele já conhecia, todos na cidade conheciam, era ponto turístico; porém, só levaria a cadela amanhã, pois já era noite e a mansão é muito longe do seu barraco. Na plaquinha também tinha um número, mas é claro que Samuel não tinha telefone.

Samuel levou a cadelinha pra seu casebre, o que não foi muito difícil, pois ela tinha gostado dele assim como ele gostava dela, depois dormiram. Pela manhã, ambos acordaram, morrendo de fome, Samuel mais do que Mia. Samuel se levantou da sua cama de palha com jornais velhos e pegou um pão mofado que estava na mesa quebrada de sua sala, era tudo que tinha. Comeu o pão aos poucos enquanto Mia o olhava, o que apertou o seu coração mais do que seu estômago estava sendo apertado. Dividiu o pão e jogou um pedaço para a cadelinha. De primeira, ela estranhou o pão, o cheiro era ruim, e não parecia ser muito gostoso. Mas a fome é maior que tudo isso; ela não se importa se é saboroso ou não, ela apenas quer ser saciada. Mia devorou o pão em algumas bocadas. Ainda estavam com fome, mas era tudo que tinha.

Mia e Samuel rumaram em direção a mansão da família Lima, ainda de manhã cedo. Duas horas já tinham se passado e ainda estavam na metade do caminho. Mia se locomoveria mais rápido se estivesse sozinha, afinal, era jovem e cheia de energia, ao contrário de Samuel, que só estava esperando a morte chegar para ceifá-lo.

Depois de mais algum tempo, se depararam com um outro cidadão, igualmente pobre a Samuel, porém, não era rico de alma. Era mais jovem e mais forte, então espancou Samuel e tomou a cachorra a força de suas mãos. Mia não gostou nada de ver Samuel apanhar, mas também, nada podia fazer nada, era muito pequena para protegê-lo.

Samuel ficou estirado no chão de barro enquanto olhava pra Mia, e ela pra ele, latindo para seu recém conhecido, que tinha compartilhado um pão mofado com ela, que mesmo que fosse pouco, era tudo que tinha. Enfim os olhos de Samuel se fecharam e ele havia aceitado seu destino, poderia se reencontrar com sua esposa e filha. Não queria ajuda, e mesmo se quisesse, não tinha como receber ajuda, quem iria ajudar um pobre homem estirado numa estrada de barro? Só se Deus fizesse um milagre; o que eu particularmente duvido que fosse acontecer.

Tudo isso tinha acontecido porque o Sr. Lima não aguentava mais ouvir o choro da filha e as súplicas da esposa, e decidiu dar uma recompensa para quem trouxesse a cadela de volta para a mansão, sã e salva. Era cinco mil reais, uma mixaria pra ele, mas para praticamente todo o resto da população, era a riqueza.

Mia passou de mão em mão por horas e horas, era sempre um mais forte do que o outro, sempre sendo levada a força. Mas em uma das batalhas, conseguiu fugir.

Mia voltou pra mansão sozinha, sem ajuda de ninguém. Não estava perdida, sabia muito bem onde estava, sabia muito bem como voltar. Apenas queria conhecer o mundo, mas isso só lhe causou decepção.