querido amigo,
vejo nas minhas olheiras
que viver se tornou uma tarefa
difícil demais
não são mais olheiras,
são crateras na estrada
entre mim
e a esperança
meu irmãozinho,
a vida me tortura com privação de sonhos
me faz passar noites em claro
e, o pior,
claros em noite
era bom ver que chovia lá fora
mas agora chove dentro
na minha cidade-fantasma
querido amigo,
onde quer que eu olhe
não encontro brilhos nos postes
nem nos olhos
a escuridão consome os semáforos
e só resta a indefinição
do eu, do aqui, do agora, do terror
então estar de pé na calçada é o suficiente pra dar tontura
e quando eu tropeço,
o tombo me faz inclinar
não consigo enxergar o chão de concreto
mas sinto um ferro pontiagudo vir de encontro a minha cabeça
então
turvo
fica
tudo
meu irmãozinho,
por mais que isso doa, permaneço imóvel
e enquanto ouço o sangue escorrendo pelo bueiro
me dou conta do que não tinha percebido antes:
essa inércia só existe porque eu acredito merecer todo esse sofrimento
contudo, e agora?
como ver as coisas de outro ponto de vista
se meus olhos são lentes sujas, escuras, embaçadas?
querido amigo,
tudo que eu queria era sair desta cidade pra achar uma maneira de acender o céu
soltaríamos fogos de artifício indefinidamente
até o sol chegar
pra nos descansar
tudo que eu queria era sair correndo pelos quarteirões gritando \"por favor, me ajuda\" até os pulmões se desintegrarem,
mas não há faixas de pedestres,
não há guardas,
não há leis,
não há chão.
só há o risco de cair,
de ser atropelado,
de se machucar.
por isso, eu te faço um pedido,
meu irmãozinho: se você estiver aí,
ponha sua capa de chuva sobre mim
brilhe seus olhos sobre o mundo
pegue a minha mão
e vamos encostar os pés no asfalto
onde ainda é seguro
onde ainda há futuro
juntos vamos atravessar a rua
juntos vamos atravessar a depressão