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Cecilia

Guerra

Guerra  

 

 

José era do mato, acostumado à vida difícil, aceitava a brutal penúria do front , mas não gostava da guerra.     

Amava os animais.  Precisando,  matava.    Cachorro mordido de cobra, cavalo de perna quebrada, gado empesteado.  Mas  não aceitava  a morte sem sentido, o ódio destilado pelo sistema  sobre  desconhecidos.    Como detestar  alguém cujo nome ignorava?   E chamar de inimigo a quem nunca havia visto?

 

Queria sentir  o odor  de bicho vivo,  estrume fresco, capim cortado.  Não o  fedor da  carnificina, o odor viscoso do medo.   Gostava de ouvir  berrante,   mugidos,  ladridos, até  esturro de onça, mas não  estrondo de bombas,  arquejo de agonizantes.

      

       Foi a natureza ordeira que o fez assumir a faxina do acampamento, sempre com baldes e panos?  Ou a  esperteza de matuto, para se  poupar de missões de morte?    Prudente, fugia de heroísmos  não procurava medalhas.  Preferia cobrir avanços, carregar padiolas,  vigiar prisioneiros.   Lutavam há meses e  ainda não matara. 

 

       Na guerra as pessoas mudam.   As terríveis privações, o assombro constante da dor  e do perigo, os horrores que  se vê e que se comete, destroem princípios, deturpam valores.   Os instintos básicos do animal tomam o lugar de sentimentos e filosofias.    É indispensável a lealdade ao companheiro,   mas perdem  importância a decência e a piedade.

      

       Na guerra as pessoas mudam, mas não se transformam.   Fazem coisas monstruosas, mas não são monstros.  No curto sossego do sono José  ouvia os  valentes chorando, rezando, chamando pela mãe.   Ele os via se urinar na hora da refrega, vomitar diante  da mortandade.  Os que  voltarem   carregarão memórias e remorsos, brotando em pesadelos e neuroses.  

      

       Há muito os soldados não ouviam  voz de mulher.   Capturaram uma criança ,  seios mal apontando no peitinho magro.   Muito frágil, não poderia ser considerada prisioneira.   Conservaram-na escondida em uma grota, e se revezavam no estupro.   Ninguém  comentava, cada um usava e voltava calado, cabisbaixo.   Depois de  dias avisaram José:   Só falta você, a menina não dura.

 

       Foi, carregando seus baldes e  panos.   De fora sentiu o cheiro acre de urina, fezes, sangue podre.    Sentou-se ao  lado da menina, muito pálida, olhos afundados em olheiras escuras.  Falava baixinho, como fazia com os animais.   Eles também não entendiam sua língua, mas se acalmavam.

 

Deu-lhe  água.   Foi  tirando as crostas  dos cabelos, muito  suavemente, até que  ela  descontraiu os músculos tensos.   Só então  cuidou do corpinho cheio de feridas e hematomas, juntou as pernas que ela não tinha forças para mover, cobriu-a com trapo limpo.   A menina  agradeceu,  juntando as mãos.    Respiração muito tênue,  estava partindo.

 

 Atento, José  ouviu passos chegando.   Acabou-se.  Ninguém mais  se serviria.   Carinhosamente acomodou  a mão pesada sobre a boca e as narinas da menina.   Tão fraca, que nem lutou.

 

José se lembraria para sempre do último suspiro débil na palma calosa.  Foi como um beijo.