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Ema Machado

Acasos do destino

Acasos do destino

 

            Embora não me visse, ela olhava para mim; perceptivelmente aérea, como se estivesse em outra dimensão. Vejo-a tão frágil, uma vela tênue prestes a apagar...  

– Não agora, não sem luta – Penso. Adianto-me, tomando-lhe o pulso - anunciava um coração prestes a desistir – como manter vivo alguém que não o queria? Grande parte do seu combustível rubro e borbulhante, esvaíra por entre o profundo corte aberto por algum artefato cortante...

            Não conseguia entender, como alguém tão jovem e bela, desistia de viver? Uma ninfa, assim a vejo - dotada de atributos físicos que qualquer mulher jovem pudesse desejar: cabelos negros e sedosos emolduram o lindo rosto adornado por enormes olhos verdes, lábios carnudos bem desenhados; pele alva e macia complementam o corpo curvilíneo. Com certeza, uma silhueta desejada até pela mais bela atriz.

            Enquanto ajeitava a medicação, observava de soslaio aquele rosto - mais parece um anjo. Anjo triste, a olhar um vazio infinito sem pestanejar. Às vezes, uma lágrima deslizava fortuitamente, indo alojar-se entre mechas da vasta cabeleira dispersa pelo travesseiro.

            - Moça! - Como se chama? – Pergunto, sem receber sequer um olhar. - Ela não está aqui - Penso novamente - Desta vez, em alta voz.

            Saio do quarto a caminho do posto de enfermagem, apanho a tabuleta de anotações, ainda permanecia sobre o balcão. Enquanto registro procedimentos realizados, busco resgatar meus pensamentos, até então, presos naquele quarto. Obedecendo ao comando do dever, forçosamente retornam empurrados pelo som da campainha, a transportar meu olhar para luz recentemente acesa: quarto oitenta e dois - o mesmo onde, até poucos instantes meus pensamentos atracaram. Imediatamente volto para lá.

            - Preciso morrer! – Deixe-me ir! - A vida é minha, ninguém pode impedir! - Estava agitada, debatia-se n’uma tentativa vã por soltar-se.

            - Calma, menina! Vai ficar tudo bem. – Digo, observando as bandagens que a prendem.

            Retorno ao posto e apressadamente preparo a injeção prescrita pelo médico plantonista - só deveria ministra-la em caso de agitação. – Feito. - Em instantes, a garota adormece novamente serena.

            Após exaustiva noite, a claridade finalmente penetra pelas frestas da persiana do posto de enfermagem. Amanhece. Alivia ver chegar a hora de voltar para casa...

            Do lado de fora, uma manhã suave me espera. Como refrigério recebo a carícia do vento, contaminado pelo delicioso olor de outono. Aspiro e expiro, caminhando por entre as árvores; despem-se de suas vestimentas, formam um colorido tapete pelo solo do pátio.

            Repentinamente sinto um arrepio frio, melancolia que aos poucos se achega. Penso no sentido da vida – Por que tantos não o encontram e tentam livrar-se dela? Sinceramente não entendo...

            Dirigindo o velho fusca, sem pressa, observo as pessoas pelo caminho: sérias e enfastiadas, poucas seguem alegres a conversarem com seus parceiros, outras, totalmente inexpressivas. Paro no semáforo, algumas crianças se atropelam ao atravessarem na faixa a caminho da escola. Delicio-me com a cena - parecem um bando de pardais inquietos e falantes. Escapa-me um leve sorriso, penso que, não deveríamos perder nosso lado infantil, certamente seríamos mais leves...

            O resto do caminho sigo sem ater-me aos pensamentos; ligo o rádio para espantá-los, também ao sono...

            Exausta entro em casa depositando o agasalho em um canto. Acho que só agora me encontro... Atento-me à enormidade de tarefas a aguardarem minha disposição já extinta – Que me esperem! - Sigo direto para cozinha, levada pelo cheiro forte de café recém coado...

            - Bom dia, filho! - Já de pé? - O que aconteceu?

            - Nada, mãe. Só queria te fazer um mimo. – Disse, abraçando-me.

            - Não vai, trabalhar cedo hoje?

            - Não mãe. -Tenho alguns casos para estudar, tirei o dia para isso.

            Carlos meu amado filho, formou-se em direito há poucos meses. É estagiário em um escritório de advocacia. Moramos num bom apartamento em bairro de classe média, única herança de meu falecido marido. Após sua morte, retomei o trabalho como enfermeira -profissão a qual exerci até ficar grávida, quando então, dediquei-me ao lar e a educação de meu filho.

            - Quanto a mim, vou tomar café, um merecido banho, e em seguida cair na cama - Depois penso nas coisas por fazer.

            - Mãezinha, já disse! - contrate alguém que possa fazer todo serviço - trabalhar vinte e quatro horas é muito estressante - quando chega, ainda tem trabalho em casa.

            - Nem penso nisso - Basta uma faxineira para fazer o trabalho pesado - o resto, faço como dá.

            - Alguma novidade? - Pergunto, captando problemas no ar... Carlos parece nervoso - sei quando tem algo a dizer sem o conseguir.

            - Não aconteceu nada, mãe... Disse seguindo em direção ao quarto.

            Após um bom sono, desperto ouvindo Carlos ao celular e pela entonação de sua voz, parece não querer que o ouça. Permaneço quieta, como estivesse ainda dormindo.

            - E aí! Teve alguma notícia dela? – É louca! - disse que iria se matar.

            A conversa fez meus pelos arrepiarem... Não quero nem imaginar. O sono chama, fala mais alto, novamente adormeço.

            Desperto assustada e pulo da cama. Carlos ao telefone vem novamente à memória; olho as horas: quase hora do almoço. - Preciso agilizar - embora não trabalhe hoje, há muita coisa para colocar em ordem.

            - Onde, estará Carlos? - Perguntava-me enquanto seguia em direção ao escritório – aí, abro a porta devagar.

            - Precisamos conversar, filho. – Desculpe-me, mas, ouvi você ao telefone – Quer me dizer, o que está acontecendo?

            - Estou com problemas mãe, não disse porque não queria assustá-la. – Acontece que, eu estava saindo com uma garota. Descobri que ela está grávida e quis me afastar, porém, ela disse que iria se matar...

            - Você engravidou a moça e quer fugir de sua responsabilidade? – Entendi, direito? - Disse aos berros.

            - Não mãe, não sou o pai! - Começamos a sair, ela não disse nada, mas, já estava grávida. Eu descobri e a deixei - Não vou assumir uma coisa que não fiz!

            - Vamos esclarecer os fatos. – Como sabe, que o filho não é seu?

            - Estamos saindo há apenas um mês, ela está com três meses de gravidez – Encontrei o resultado do exame na casa dela por acaso, e quando perguntei, ela disse que se mataria se eu a deixasse.

            - Deus, me ajude! - Não sei se acredito em coincidência, mas, no hospital ontem chegou uma paciente com os pulsos cortados - Algo me diz que há uma ligação com tudo o que está me dizendo...

            - Como pode, mãe? – Sei que ela não teria coragem!

            - Qual o nome da sua namorada?

            - Ana Amélia... - Ele respondeu cabisbaixo.

            Tive que me sentar - o nome, atingiu-me como um raio - Era ela! - Só podia ser! - A menina do quarto oitenta e dois: Ana Amélia de Queiroz.

            Carlos ficou lívido com minha reação. Sua voz saiu como sussurro: - Posso, ir vê-la?

            - Vamos, após o almoço. – Vou com você.

            Não sei como ainda consegui preparar o almoço, estava com a cabeça fervilhando. Durante a refeição permanecemos calados.

O destino nos prega peças, talvez por sua ironia, desde o início senti algo diferente, como se algo me ligasse àquele anjo. Acho que no fundo eu sabia, ela pertencia ao meu universo...

            Chegamos ao hospital. Após solicitar e receber permissão, subimos ao quarto oitenta e dois situado no segundo andar. No corredor o ar permanece pesado. Carlos seguia calado, com os ombros arriados; pela primeira vez vejo o medo apoderar-se de meu filho.

            - Esse é o quarto. - Eu disse abruptamente, parando em frente a porta.

            - Mãe, deixe-me falar com ela primeiro. Depois, você pode entrar. – Está bem assim?

            - Tudo bem, filho. – Vá!

            E ele se foi. Entrou feito boi no matadouro - a responsabilidade pesava-lhe e sinceramente, eu não sabia como agir.

            Após intermináveis minutos (nos quais, eu rezava para que tudo se acertasse) Carlos aparece com enorme sorriso nos lábios.

            - Posso entrar? – O que houve? – Falou com ela?

            - Mãe, nunca vi aquela moça antes! – Não é a Ana!

            - Mas... – O nome dela é Ana Amélia de Queiroz!

            - Pois, sim! – O nome da minha “ex” namorada é: Ana Amélia de Assis.

            - Acabei de receber uma mensagem dela - contou ao pai da criança sobre a gravidez e eles se acertaram.

            - Graças a Deus!!! – Então, podemos ir? – Perguntei aliviada.

            - Acho que vou ficar, só mais um pouco mãe – vou ficar conversando com a Ana Amélia. – Acho que ela precisa de mim...

            Após um abraço, saí pensativa. Não havia como não perceber, era perceptível o brilho novo que surgia nos olhos de meu filho...