Joecia

Cotidiano

Rafaella acorda todo dia as 5. Hábito. Levanta, vai ao banheiro, abaixa o short velho do pijama amarelo e senta na privada. Pensa na vida. Com um olho só, mas pensa. É o sono, é o cansaço, é o ex namorado. Ela mora sozinha. Hábito. Saiu de casa aos 20. Hoje tem 44. Pois é... ex namorado.
Se seca, levanta, tenta se olhar no espelho quadrado por cima da pia do banheiro. Com um olho só, o outro ainda dorme. Volta pra cama. Deita. Vira de um lado pro outro umas quatro ou cinco vezes. Na parede tem fotografias. Ela. Ela e uma árvore, ela e Dedé, ela e o gato Malaquias, ela e a mãe, ela e um jardim. Dessa ela gosta mais. O jardim fica em São Paulo, foi a primeira e única vez que esteve lá. Ela acende a luz do abajur e fica olhando as fotos. Senta na cama. Perde o sono.
O despertador só vai tocar as sete e meia. Hábito. Ela trabalha como garçonete.
Rafaella já fez planos, já quis se casar, já quis ter filhos. Hoje ela só olha as polaroides na parede.
No celular, nenhuma mensagem. Ela então se levanta, volta ao banheiro e agora sim, consegue se olhar com os dois olhos abertos no espelho. Lá fora ainda tá escuro. Dentro dela também. Ela pensa em tomar um banho, mas prefere ir pra cozinha. Toma o resto de um iogurte que já estava aberto. Come pão com margarina. Mexe nas frutas em cima da mesa, mas não come. Estão apodrecendo. Ela também. Abre a janela e acende um cigarro.
Ela volta pro quarto. Abre a gaveta, separa uma calcinha, um sutiã e um par de meias brancas. Pega tudo, mistura em uma toalha e vai pro banheiro. Prende os cabelos sob uma touca, deixa o chuveiro bem quente e toma seu banho. Enquanto se banha, observa seu corpo. As varizes azuladas em suas pernas. A flacidez dos seus seios. A textura da pele. Tudo caindo conforme a água, tudo passando.
Ela não se demora no banho. Tem medo de se afundar em seus pensamentos melancólicos. Tem medo de perder a hora. Tem medo da faca afiada de Hitchcok atravessar a cortina do box e à sangrar até a morte. Tem medo de muita coisa. Só lava os cabelos às terças e sábados. Tem preguiça. Tem medo e tem preguiça. Tem um cansaço imenso da vida.
Antes que toque o despertador, Rafaella já está pronta. O avental vermelho combina com a touca no cabelo. O uniforme cinza é o mesmo há 13 anos. Ela se olha espelho. As vezes se acha bonita, outras vezes só suspira bem fundo e apaga a luz do quarto.
Um ônibus até a zona leste. Outro até o centro. Começa as 11. Para quando acaba.
Cuida da limpeza das mesas, cuida dos clientes, cuida dos pedidos. Seus tornozelos incham. Não cuida dela. Entre o cheiro de hambúrguer e a espuma de milk shakes, ela quase sempre não come nada. Tá sumindo. Tá passando.
Na volta, vem cochilando. No fone de ouvido, músicas dos anos 80. Quase sempre pega o último ônibus. Cansaço. Sono.
Chega em casa já é madrugada. Silêncio.
Liga a TV da sala mas não senta pra assistir nada. Vai pro quarto. Tira os sapatos pesados e deixa a bolsa no canto da cama. Se deita e fica olhando pro teto. Antes que o sono chegue, se levanta e vai pro banheiro. Tira o uniforme e fica se olhando no espelho. Faz caretas, estica a pele, repuxa, confere as rugas, abre bem a boca, nota o brilho do bloco dourado no molar direito, cerra os dentes, levanta o nariz pra ver se tem alguma sujeira, abre os olhos, olha pra um lado, pro outro, tira a touca e mexe na raiz dos cabelos, pega a pinça, tira os fios brancos que encontra, se afasta, abre o chuveiro e entra no banho. A água quente lava as mãos cheias de calo. Agora ela já não pensa em tanta coisa. Tá cansada. Tá com sono. 
Sai do banho e vai direto pra cozinha. Pega um copo de leite gelado, um pedaço de pão e vai se sentar na sala. Muda de canal enquanto come, mas não presta atenção em nada. Coloca o copo vazio no chão. Acende um cigarro. Traga como se fosse vida. Como se fosse força. Como se fosse.
Desliga tudo. Arrasta os chinelos pelo escuro até o quarto. Ela já sabe o caminho. Acende o abajur. Veste o velho pijama amarelo. O relógio marca 2:45. Ela se deita. Apaga tudo. Uma lágrima cai e rola até o travesseiro. Ela aperta o rosto. Segura dentro do peito um grito abafado. É saudade. É solidão. É o medo de tudo. É o cansaço. É a falta que faz. É o silêncio. Ela não grita. Devia gritar, mas não grita. Chora. Soluça baixo e chora. Enxuga o rosto e faz uma prece. Pra ela e pra ele.
Mais um dia e ele não deu nenhum sinal de vida.
Rafaella acorda todo dia as 5.


Joecia Reis